Ler nas entrelinhas pode ser doloroso. E assim o foi em Ouro Preto. Chegamos cheias de expectativa sobre o que história da cidade poderia nos proporcionar. Logo quando descemos ao centro, perceber a incrível semelhança com o centro histórico de Salvador foi um exercício divertido. Era como se reconhecêssemos cada pedacinho dos sobrados, as ruas, ladeiras e cores. Tínhamos um roteiro já organizado, mas foi impossível deixar de visitar alguns locais não previstos. E, sinceramente, ainda bem o fizemos.
Um desses pontos não escolhidos foi a Casa dos Contos. Um museu instalado num antigo casarão, com senzala e tudo mais. Eram muitas as exposições espalhadas pela Casa: telas de artistas europeus, a história da moeda brasileira desde o período colonial, uma cozinha de escravos e a senzala. Depois da sugestão de roteiro feita pelo guia na entrada, ficamos curiosas com o que encontraríamos na senzala. Esperávamos emoções fortes. Não quis repetir o que aconteceu no Museu Afro em São Paulo ao visitar primeiramente a réplica de um navio negreiro. O impacto foi tão forte que não tive ânimo, vontade, nem estômago para ver mais nada.
Enfim rodamos todos os andares da casa. Ouvimos as explicações muito bem explanadas dos guias que, atentos a todas e quaisquer dúvidas dos visitantes, reforçavam o que estava colocado em desenhos e descrições colados às paredes! Era hora de descermos até a senzala. Fomos primeiro ao local onde eles disseram funcionar a cozinha dos escravos. A não ser pela placa na qual estava escrito “cozinha dos escravos”, nada mais indicava o que funcionava ali. Um verdadeiro buraco onde cabiam umas cinqüenta pessoas de pé. Havia outras aberturas nas quais – deduzimos – era por onde eles recebiam e mantinham quente a comida.
Na “cozinha dos escravos” não tinha desenhos, descrições ou guias. Havia uma grande balança, sem precedentes ou explicações bibliográficas. Perguntamos a uma das guias fora do local e ela confirmou a suspeita: Aquela balança não integrava o ambiente, mas fora colocada ali por não haver outro lugar. Ela também não tinha muitas informações sobre a “cozinha” a não ser que, além de tudo, a água do casarão escoava por ali.
Pasmas, descemos finalmente à senzala, na tentativa de salvar o passeio. Não havia guia, mas um segurança, e a única informação passada por ele foi a proibição de fotografar. De um lado, os primeiros objetos da exposição colocados numa mesa de pouco mais de um metro: ferramentas usadas para prender, torturar, castigar e marcar os escravos. Essa mesa trazia pequenas telas mostrando como alguns desses objetos eram usados. Esses instrumentos e a umidade do local foram tudo o que havia de mais próximo do que acreditávamos ser uma senzala!
O que vimos no restante do acervo dizia claramente que fizeram dali um luxuoso paiol de quinquilharias históricas: Uma cadeira odontológica, chinelinhos de ouro e prata, imensas panelas de barro, talheres, revólveres, facas e outros objetos cortantes, ferramentas de fábrica utilizadas para colheita entre outros itens. Depois de horas de leituras em arquivos e leituras diversas ao longo dos anos, não dava pra engolir que os escravos usufruíam o que ali estava exposto. E, se na cozinha colocaram uma balança fora do contexto, o que impediria de cometer outro absurdo?!
Preenchemos o “formulário para críticas, sugestões e reclamações”. Usamos quase todo o espaço. Lembro que no meio da queixa mencionei que atitudes como aquelas perpetuam as truculências e nos remota os cenários de duzentos, trezentos anos atrás. Senti que a tão esperada visita a Ouro Preto acabava ali.
As entrelinhas não são imparciais
Na tentativa de digerir “o que não vimos”, seguimos andando até a praça central, onde está o monumento a Tiradentes. Muitos estudantes espalhados fazendo fotos pendurados na estátua. Tomamos outro caminho. A idéia era irmos até a Mina do Chico Rei, figura que, segundo relatos, era um escravo que enquanto escavava a mina, ia guardando ouro e o que mais encontrasse de valor em buracos espalhados nas paredes das escavações. Assim, ajudou a construir, por exemplo, a Igreja de Santa Efigênia. No caminho, um homem, visivelmente bêbado passou a nos seguir. Dizia saber onde era a mina e poderia nos levar. Achamos tê-lo despistado e entramos no lugar.
A entrada para mina era dividida com um restaurante que não pareceu nada popular. Ainda para nossa surpresa, o homem que tomava conta da mina – e recebia o dinheiro das entradas – era branco, com seus quarenta anos talvez. Disse que a propriedade pertencia a sua mãe. Mas, grande mesmo foi o espanto em saber que aquele homem bêbado que nos seguia, realmente trabalhava para ele e seria nosso guia lá dentro.
Enquanto colocávamos os capacetes, obrigatórios para adentrar a mina, o dono do espaço foi avisando que iríamos gostar de conhecer um ponto tão importante e que dizia respeito a “nossa história”, a “história do nosso povo”. Mas o que isso significava? Era ele uma espécie de ariano? Uma raça pura e superior? A ele só faltava o chicote! À medida que adentrávamos a mina, íamos pensando na falta de cuidado daquele homem com o funcionário. O que nos garantia que era feita manutenção na mina? Que condições teria aquele homem de orientar alguém em caso de acidente lá dentro? Um simples mal estar? Pelo sim, pelo não, abandonamos a aventura.
Era impossível estar indiferente, ser neutro. Entretanto, boas pesquisadoras buscariam outras fontes, mesmo que reforçassem a impressão que tínhamos até ali. Seguimos. De igreja em igreja, pagando taxas de entrada, ouvindo guias de idades variadas, mas quase todos negros. Desistimos de entrar no Museu da Independência para buscarmos as obras de Aleijadinho. Um segurança, negro, alto se prontificou e nos orientou a chegar no que ele chamou de “nossas igrejas” ou “igrejas mais importantes para nós”. Falou baixinho, um pouco acanhado pela ênfase, quis crer. Fez questão de sair da guarita e nos mostrar onde era.
Curiosamente, todas as igrejas, feitas e freqüentadas pelos negros do período colonial, segundo referências bibliográficas, foram erguidas muito longe do centro. Uma dessas era a Santa Efigênia, aquela construída pelo Chico Rei e na qual encontraríamos traços da obra de Aleijadinho. Uma subida sem fim. A impressão que tínhamos é que a igreja acompanhava o trajeto: Quanto mais andávamos, ela também o fazia! Mais de trezentos metros subindo pela estrada de pedra, descobrimos que está fechada há mais de ano, esperando uma reforma já autorizada. Estava difícil não compreender o que entrelinhas da cidade queriam nos dizer.
Havia muitas casas no alto das montanhas em Ouro Preto, tal qual em Sabará. A diferença em Ouro Preto é que a disposição das igrejas, o tom de cada palavra dita, o descuido com o povo que ergueu e construiu a base da cidade, tudo insinuava uma segregação. Era como se, historicamente, afastando o povo negro tentassem abafar, apagar as marcas das atrocidades. Mas, para um bom entendedor, Ouro Preto agride quando usa as mesmas estratégias para gritar o que houve – e ainda há – no que diz respeito a dominação. Como se em ladeiras e vielas da cidade ainda pudéssemos escutar o estalar dos chicotes.
Vista da cidade do alto da ladeira, de frente a Igreja de Santa Efigênia
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