No início da semana acompanhei uma amiga ao cemitério para dar entrada ao processo de cremação dos restos mortais do marido. Com quase oitenta anos e viúva há pouco mais de quatro, não seria nada fácil enfrentar o adeus definitivo àquele companheiro de mais de quarenta anos. Estava preocupada. Minha idéia era evitar que passasse por tal situação e me ofereci pra cuidar sozinha dos procedimentos, afinal, o fato de não tê-lo conhecido poderia facilitar a execução da tarefa. Deixaria pra trás minhas cismas com cemitérios e cuidaria dos trâmites.
Ela não quis que cuidasse, achou que era dar muito trabalho, mas me pediu para acompanhá-la. Estava nervosa, embora tentasse não transparecer. Seguimos. No caminho contou que já havia pago cerca de mil reais para o serviço. Entrou em contato horas antes com a administração do cemitério a fim de agilizar o processo e diminuir as horas de permanência naquele lugar.
Numa pequena sala uma mulher nos recebeu. A mesa dela estava no centro da sala e ao redor muitas estantes carregadas de caixas, as chamadas urnas: grandes, pequenas, coloridas, brancas, prateadas ou cinzas. Todas traziam nas etiquetas os nomes dos mortos.
Com a naturalidade de quem já está adaptada ao local, à inexistente movimentação da clientela, ao serviço enfim, ela nos ofereceu água, café enquanto procurava uma ficha com os dados do morto. Aquilo tudo me pareceu tão estranho! Não encontrou a tal ficha e começou a fazer perguntas à minha amiga. Um questionamento ainda doloroso. Fiquei incomodada com aquela situação, com a falta de tato. Afinal, tudo deveria garantir o mínimo de permanência ali para “aqueles que ficam”. Lá pras tantas ela perguntou à minha amiga se a exumação já estava agendada. Foi a gota dágua! Oras, se vai haver uma cremação, presume-se precisar do corpo. E seria ela a pessoa a identificar se os procedimentos corriam normalmente, ou não?!
Não sei se o ambiente, as perguntas ou toda a situação. A minha amiga começou a dar respostas ásperas e monossilábicas, levantou-se de repente e disse que ia embora. A moça insistia em explicar os passos de todo processo, tentava, tardiamente, ser gentil. Já não funcionava. Minha amiga saiu da sala. A funcionária ficou de ligar depois e informar o dia pra retirar a urna.
A situação toda era nova e tão esquisita pra mim. E não era somente pelo caráter dolorido que a morte imprime a meu ver. A idéia da morte é muito mal resolvida em minha cabeça, admito. Ainda assim, passadas as horas e, analisando friamente, não deveria ficar tão mal impressionada, afinal, se as pessoas não estão considerando as outras enquanto estão vivas por quê o fariam depois de mortas? Para quem está do outro lado é um negócio como outro qualquer. E o que seria dos matadores de aluguel se um lampejo de sensibilidade os acometesse na hora de puxar o gatilho? Um mundo mais feliz, por certo.
Apesar de tudo, mantenho minha fé nas pessoas. Uma esperança teimosa. Continuo acreditando no dia em que o zelo e a atenção com o próximo faça parte do consciente coletivo. Insisto na crença que o cuidado com o outro tem o poder de transformar.
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